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Papa-Léguas Gnóstico

Evangelho do Coiote

93!

O Evangelho do Coiote é uma das melhores coisas que o escritor de quadrinhos Grant Morrison já fez . Seja pelo sub texto religioso, seja por utilizá-lo de uma forma inusitada ou, como padrão em sua obra, pela metalinguagem. Publicada na revista mensal Animal Man n° 5 (no Brasil DC 2000 n° 7 em 1990), Morrison introduz um coadjuvante que acaba roubando o papel do protagonista. Recomendo que leiam a estória antes aqui.

Pronto? Vamos lá.

Morrison tem o dom de trabalhar com arquétipos. É um autor que comunga com o zeitgeist e trafega nele muito á vontade em suas criações, por isso que suas estórias possuem muitas camadas de interpretação, se encaixando em várias doutrinas e linhas mágico-filosóficas. E nesta isso também acontece ao misturar a visão tradicional da igreja Católica Romana com a Gnose cristã. Não vou entrar na definição da doutrina católica aqui, devido ao enorme contato que temos com ela focando, rapidamente, na segunda opção.

A Gnose cristã foi um movimento místico cristão surgido por volta dos ano 100 DC. Considerado por muitos como resultado da interação do judaismo, cristianismo e as religiões orientais. Possui seus próprios textos sagrados, sendo que o principal é o Evangelho de Tomás. Segundo o mito gnóstico existe um deus perfeito, puro, imaculado, vivendo em uma realidade superior a nossa, o Pleroma. Tal ser gerou outros seres divinos (aeons) com, metaforicamente falando, gêneros diferentes. Eles também são capazes de gerar proles perfeitas em si mesmas contanto que as gerem utilizando um parceiro do sexo oposto. Um dos aeons, Sophia, decidiu gerar sozinha um filho sem a ajuda de um parceiro. O resultado foi um deus imperfeito e mal formado, chamado de Yaldabaoth ou Demiurgo. Consciente do erro, Sophia joga seu filho numa região separada do cosmo. Tal entidade mal formada e ignorante, vendo-se sozinha, acredita ser o único deus. Ele então cria a Terra e os seres humanos. Sendo frutos de um deus imperfeito, somos igualmente incompletos, num mundo ilusório. Este deus é o bíblico (antigo testamento). Cristo seria um aeon enviado pelo verdadeiro deus perfeito, oriundo do plano de existência superior, para nos ajudar a enxergar a verdade e nos libertar desta ilusão em que fomos gerados, escapando das armadilhas da matéria e alcançando as altas regiões espirituais. Tal processo ocorre através da consciência da nossa verdadeira natureza e origem - gnose significa "conhecimento". Porém, existem os Arcontes, entidades criadas para nos manter na ilusão, detendo a jornada espiritual. Foi perseguida e eliminada pela Igreja Romana sendo considerada a maior das heresias (1). Muito pouco restou da sua metodologia sendo ressuscitada, nos dias de hoje, pela associação com psicanálise junguiana.

Voltando para a estória, num primeiro momento, o Coiote espelha a trágica figura do Jesus Cristo católico romano onde o sofrimento é a forma pela qual ele cumpre o seu dharma. A mão do Demiurgo carrega na tinta da agonia ao pintar a vida do Coiote. Assim percebemos uma referencia ao deus implacável dos gnósticos, uma criatura que não comunga com os valores humanos, submetendo as suas crias á toda sorte de desventuras - aliás, uma boa representação da imprevisibilidade da existência. O infeliz é lançando em nosso mundo para sofrer, eternamente se regenerando com o único intuito de satisfazer ao sadismo do Pai. Sofre, assim, por cair no mundo material em oposição àquele bidimensional, lúdico em que foi desenhado. Ele caiu como os anjos na guerra do céu, no inferno da realidade. E também pelo mesmo motivo que Adão e Eva perderam a inocência: desobediência ao criador. E assim ele sofre infinitamente como Prometeu no Cáucaso; mais ainda do que a divindade máxima da agonia na cultura cristista. O nazareno agonizou por um período e ascendeu aos céus mas, ao contrário do titã, o Coiote não teve um centauro para tomar o seu lugar. A forma de cumprir a missão era exatamente o oposta a de Cristo: enquanto este deveria morrer o Coiote deveria viver em eterno pesar como a divindade grega.

Em relação ao pensamento telêmico toda essa idéia de sofrimento foi abolida por Liber AL sendo um dos marcos que define o Novo Aeon. Devemos ter em vista que a "idéia do sofrimento" na Iniciação foi revista mas não abolida. Sim, "Osíris é um deus negro" porém ele ainda existe, é parte do processo e não mais o fio condutor. Ao avançar na iniciação, percebemos que o ego precisa ser deslocado para que o Algo mais se manifeste e isso é percebido, por ele, como um sofrer. O ego, como Osíris, morre mas continua existindo de outra forma, nos subterrâneos, abaixo de outra "coisa" que toma o seu lugar. No mito egípcio, Osiris perde o falus da mesma forma que o ego perde o seu poder. Ao contrårio do Coiote, que caminha seguindo a trilha do pesar, 666 nos mostrou que "a existência é pura alegria; que todas as tristezas não passam de sombras; elas passam & se vão; mas há aquilo que permanece.(2)" Nós, da Fraternidade Branca, damos as mãos a dois deuses em nossa Jornada: Dionísio que carrega o excesso, dando-nos como meio e não fim e Apolo que nos presenteia com o refinar de todo êxtase (3).

O caminhoneiro é uma metáfora do humano cristista, supersticioso onde suas ações são guiadas pelo medo, que nada mais é do que a ignorância da realidade, da própria realidade sendo, na nossa doutrina, o prenúncio de fracasso. Pode ser visto igualmente como uma manifestação das qliphoth um estado de ignorância e submissão aos sentidos e impressões externas a principal via de ação dos Arcontes. Ao tirar a vida do animal, percebemos o populacho condenando Jesus Cristo á morte - um erro de avaliação devido a escravidão dos sentidos. O momento em que o Coiote entrega o papiro ao coadjuvante da história é um dos mais melancólicos pois, o Homem Animal, não entendendo a linguagem original, simboliza a raça humana que nada compreendeu da mensagem trazida pelo Cristo tornando o seu sofrimento inútil. E o final, magnífico, onde é mostrado o mecanismo da realidade, pincelado pela recursividade irônica e da metalinguagem onde vemos o alcance da mão do Demiurgo. Dos dois.

 

1 - Ver Carta a um Maçon para mais informações.

2 - No original: "Remember all ye that existence is pure joy; that all the sorrows are but as shadows; they pass & are done; but there is that which remains." AL II,9

3 - "Be not animal; refine thy rapture!" AL III,70

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