Desde o início de seu desenvolvimento cultural, o homem buscou estabelecer relação não só consigo mesmo e com seus pares, mas com o ambiente. A concepção de divindades, demônios e principalmente da magia, advém basicamente de um conceito: a ignorância.
A ignorância das leis da natureza e de suas próprias capacidades. A dificuldade em explicar fenômenos externos e angustias pessoais, resultaram em subordinação ao desconhecido, muitas vezes atribuindo superioridade existencial.
Uma antiga passagem que talvez descreva muito bem essa relação de angustia , sofrimento e subordinação, seja o Livro de Jó. Nele é belamente exposta a crueldade da condição serviu humana, buscando estabelecer uma causa para o sofrimento em associação com uma figura que, em muitas vezes na história, serviu como muleta para muitas situações: o demônio.
Do grego daemons este arquétipo chegou até nós sob vários significados e na cultura Thelêmica ele assume um diferente aspecto, o do Sagrado Anjo Guardião, o daimon pessoal.
Ao conceber um deus único virtuoso, o homem criou um problema: foi obrigado a satisfazer o seu conceito de dualidade com um par inverso, o diabo. Desnecessário dizer da utilização da figura de Lúcifer como mecanismo de controle de massa por seitas crististas. Carta á um Maçon de Marcelo Motta, resume bem isso.
Em Thelema como na maioria das verdadeiras filosofias iniciáticas, o universo é colocado sob uma ótica antropocêntrica, deslocando demônios à condições pessoais.
Na Árvore da Vida, tais conceitos estão presentes em Qliphoth, onde está a consciência do Probacionista, ou no Abismo de Daäth, pronto para levar o adepto através do conhecimento.
Símbolo = união Diabolo = dispersão ou Corozon, o demônio adotado do sistema enoquiano de Dee e Kelly, habitante do Abismo.
Outro conceito desagregador é Nephesh, que é definida como a alma animal do ser humano, os instintos. Na tradição da A.·.A.·., é dito que a Esfera de Nephesh está no caminho do Universo , de Neófito a Zelator, entre os planos físico e astral. O Neófito é provado por ela. Segundo Crowley, "o Neófito é sempre tentado por uma mulher". Alguns á primeira vista, poderão admitir alguma característica machista ( uma vez que o Neófito pode ser mulher), porém a tentação pode não ser por vias sexuais.
O perigo é definir um período certo para tal efeito. Nada impede que ocorra antes ou depois do período tradicional e não só uma, mas várias vezes, pois somos carne e tal condição nos acompanhará por toda vida neste plano.
Um conceito muito importante e não explicado claramente na literatura thelemica, são os dos Quatro Príncipes do Inferno e suas relações na vida prática.
O primeiro lugar onde eles são citados como tal, é o famoso livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago. Nele, o adepto ao atravessar o abismo, deve invoca-los e domina-los uma a um. O segundo no próprio Livro da Lei, capítulo III:
Crowley, no livro chamado " The Vision and Voice", relaciona esses demônios, com conceitos passados do velho Éon:
"E este é o horror que foi mostrado perto do lago próximo à Cidade dos Sete Montes, e este é o Mistério dos grandes profetas que vieram à humanidade, Moisés, e Buda, e Lao-Tan, e Krishna, e Jesus, e Osíris, e Mohammed; pois todos estes atingiram o grau de Magus, e portanto estavam obrigados pela maldição de Thoth. Mas, sendo guardiões da verdade, eles ensinaram apenas falsidade, exceto a esse que compreenderam; pois a verdade não pode passar o Portal do Abismo.
"Mas o reflexo da verdade tem sido mostrado nas Sephiroth mais baixas. E seu equilíbrio está em Beleza, e portanto aqueles que buscaram apenas a beleza tem chegado mais perto da verdade. Pois a beleza recebe diretamente três raios das superiores, e as outras não mais que um. Por isto, então, aqueles que buscaram majestade e poder e vitória e conhecimento e felicidade e ouro tem sido decepcionados. E estes dizeres são as luzes de sabedoria para que possas conhecer teu Mestre, pois ele é um Magus."
Sexto Aethyr
"Ó tu que contemplaste a Cidade das Pirâmides, como contemplarias tu a casa do Pelotiqueiro? Pois ele é sabedoria, e pela sabedoria ele fez os Mundos, e daquela sabedoria saem julgamentos 70 por 4, que são os 4 olhos do de duas cabeças; que são os 4 diabos, Satã, Lúcifer, Leviathan, Belial, que são os grandes príncipes do mal do mundo.
"E Satã é adorado por homens sob o nome de Jesus; e Lúcifer é adorado pelos homens sob o nome de Brahma; e Leviathan é adora por homens sob o nome de Allah; e Belial é adorado por homens sob o nome de Buda.
Terceiro Aethyr
Complementando, na A.·.A.·.dizemos que o ser humano sempre é "tentado" de quatro maneiras:
- Matéria - dinheiro, status, oportunidades, vantagens, glamour, ego.
- Sentimento - pontos fracos no emocional
- Intelecto - tramas, manipulações, jogos mentais
- Poder - megalomania, domínio, egocentrismo.
E a associação com os Príncipes ocorre da seguinte maneira:
- Matéria/Lúcifer - a condição da ilusão material de Maya que é o poder de Brahma de dar aparência às coisas, onde o glamour, o status nos iludem sobre o real significado das coisas e situações.
- Sentimento/Satã - Jesus e sua herança sentimental propagada pela igreja católica que também nos ilude e nos desvia das decisões certas a serem tomadas, o estado de "Porque" ( Because)1 do Livro da Lei, onde se descobre um falso Hadit externo (Jeová, Jesus, Allah) que nos desorienta, levando aos homens a se inferiorizar diante de divindades ilusórias.
- Intelecto/Belial - Buda a negação dos sentimentos e necessidades físicas inerentes ao ser humano. Tudo é sofrimento e a razão do sofrimento é o desejo. Tentar nos livrar do desejo é impossível, pois é característica humana de viver, sentir e aprender a utilizar, conviver, não negar. A razão pura engana o homem facilmente.
- Poder/Leviathan - Allah, um aspecto megalomaníaco do Porque, " Não há Deus senão Allah" , presumindo que não exista outra divindade que não ele, excluindo qualquer outra manifestação e Aiwass respondeu dizendo " Não há Deus senão o Homem".
Na literatura mundial, podemos traçar paralelos destes conceitos, como em Moby Dick, de H. Melville.
Nesta obra , o capitão Ahab mostra-se um homem obsessivo por uma criatura que considera a encarnação do mal: Moby Dick.
Podemos afirmar que o incansável capitão, dono de uma férrea força de vontade, sucumbiu a sua condição " Nepheshiana" através de dois demônios: Satã, pelo sentimentalismo e Leviatã pela megalomania. No livro, Ahab realiza um ato mágico destrutivo ao forjar o arpão que iria usar na baleia, no sangue doado por três marujos, e batizando-o em nome do diabo. Seu Leviatã foi crescendo até tornar-se um monstro gigante, um reflexo em grande escala de si mesmo O seu corpo mutilado refletia a sua condição e a sua desgraça, o seu nêmesis o levou às profundezas do mar pois outrora era uma casca vagando pelo mundo dos homens exalando obsessão e ódio.
Um fim apropriado, pois já havia sido consumido pelo aspecto negativo do elemento água e nada mais coerente que ela fosse o seu túmulo, eternamente ligado ao seu demônio.
Outra entidade muito comum em magia é, ao mesmo tempo, a mais famosa e mais incompreendida representação, é a figura de Baphomet.
Resgatada por Eliphas Levi no séc.XIX, essa figura tem sua mais provável origem entre os cavaleiros templários. O seu significado é um tanto obscuro, mas basicamente representa a natureza dualística das coisas e uma síntese dos aspectos masculinos e femininos. Aliás, Levi valia-se muito de conceitos dualistas na sua interpretação do cosmo, e o andrógino Baphomet não escapou a regra.
Das sociedades iniciáticas que cultuam hoje tal símbolo, cada uma a seu modo, a Maçonaria ainda é a mais conhecida e antiga. Não pode se esquecer da alemã Fraternitas Saturni, criada nos anos 20 e sua "filhas" a Ordo Saturni, criada nos anos 70, por membros da F.S. e a Ordo Baphometis, desenvolvida na década de 80 por um Grão Mestre da F.S. Walter Jantschick A primeira foi originada de um ramo da ordo templi orientis alemã, na época sob direção de Theodore Reuss. Alterou o sistema de graus aproximando-se do tradicional da maçonaria ( 33) e desvinculou-se dos objetivos e conceitos da ordo templi orientis , seguindo uma linha própria.
Como a maioria dos sistemas de magia sexual, trabalha com o conceito de alimentação da egrégora da ordem. A segunda, gerou internamente outra ordem desta corrente, chamada Ordem de Set.
A terceira vale-se de representações de conceitos próprios das entidades mais ocultas da psique humana sendo comandada por um triunvirato alemão e conta com representações no Brasil.
O mesmo Levi, também resgata a figura de Lúcifer, indo de encontro ao conceito da cristandade até hoje presente. Nele, Lúcifer é definido como o portador da luz, aquele que traz a sabedoria à humanidade, possuindo equivalente no grego Prometheu, deturpado por tendenciosas interpretações.
No período medieval os demônios foram muito valorizados ( só devem perder para os dias de hoje no quesito atividade). Os maiores grimoriuns sobre o assunto nos dão uma visão muito dicotomizada do assunto, quase todas as invocações e exorcismos são feitos pelos nomes de Deus ou Cristo. O cristianismo era muito presente. Devemos notar que na Goetia, a representação dos demônios, sempre é zoomórfica ( o homem dominado pelo seu lado selvagem, animal) e bons conceitos podemos tirar disso.
Uma visão diferente era dada pelos árabes, com seus djins ( gênios) que eram "bons" e "maus" ao mesmo tempo, assim como o homem. A maioria tem conhecimento pela obra Aladin ( Al Djin) onde o garoto "domina" essa manifestação de sua mente.
Aqui vale uma observação: o movimento protestante que faz um uso muito constante da figura destrutiva do diabo, com toda certeza é o grande mantenedor de sua existência. Em cada ritual de exorcismo realizado todos os dias, em várias partes do mundo da forma intensa que é feito e suas pregações com sendo ele o culpado de todos os males, alimenta ferozmente a egrégora da figura. Porque os rituais são de expulsão e não de extermínio?
Estamos diante de um caso clássico de simbiose, onde cada lado garante a existência do outro, eternamente.
Ao assumir o título de "Besta 666", além de o faze-lo por razões cabalísticas, Aleister Crowley o fez a fim de chocar e combater o pensamento sentimentalista cristista, principalmente o pensamento ortodoxo vitoriano, que certamente o traumatizou na infância, pois era filho de fundamentalistas cristãos e foi severamente instruído nessa filosofia. O mesmo ao adotar a nomeclatura cristã em vários de seus conceitos.
perigo do thelemita de primeira viagem, ou o do mal instruído, é vestir a camisa do "cuspidor de cruz" e cometer erros do tipo de certos grupos protestantes e , em última instância, o do próprio capitão Ahab.
"Os escravos servirão" disse Aiwass.E o que acontece quando somos escravos de nós mesmos?
Talvez o mais insidioso dos demônios seja aquele que surge ao encararmos um espelho.
APOPANTUS KAKODAIMONUS
Agosto de 2001 ev
1 - "No verso original, 'Porque' é 'Because'. A soma cabalística das letras é 29; a soma das letras de Hadit também é 29. Porque indica portanto uma falsa divindade externa, que pode ser por incautos tomada pela verdadeira interna ...O sintoma de alguém que está sob o domínio do 'Porque' é a tendência a adorar 'Deus' como algo externo a nós mesmos; ou a nos considerarmos como pecadores, indignos, condenados ao inferno etc.
...A manifestação do 'Porque' é sempre piegas 'consoladora', 'humilde' ,'altruista' ou então é o extremo oposto: arrogante, presunçosa, ditando a conduta alheia cruel e presunçosa.
... A inclusão desta longa nota teve por finalidade evitar que aspirantes de mente desregrada projetem seus conflitos internos no Astral, imaginando a existência de alguma entidade deliberadamente hostil - no sentido absoluto da palavra - ao progresso espiritual do homem. Não existe tal entidade. Todos os demônios são criaturas ilusórias . Certas entidades de outras linhas de evolução, chamada daemons pelos gregos podem parecer incidentalmente hostis ao progresso humano. Elas não são mais hostis do que um tigre faminto é hostil quando ataca um homem ( o que raramente ocorre, diga-se de passagem).
Equinócio dos Deuses, 1976